sexta-feira, 25 de abril de 2008

VELHAS FESTAS NAS MEMÓRIAS DE VELHOS NEGROS DO ROSÁRIO EM JARDIM DO SERIDÓ-RN.

As festas de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário realizada em Jardim do Seridó-RN me pareciam muito familiar, afinal sou filho de família católica. Assim, como muitas outras crianças, acompanhadas de seus pais, em minha infância, participei dos rituais de coroação dos “reis negros” e me emocionava com os sons estridentes dos tambores a entoarem suas melodias, principalmente quando tocados no interior do templo católico, que em virtude de suas largas paredes, tornam uma acústica que embalava o meu coração. Em 2002, quando de minha entrada no curso de História, me lancei no universo destas festas. O período da graduação foi passando e a idéia de desenvolver uma pesquisa sobre as “festas dos negros” foi sendo amadurecida a partir do diálogo com os professores, das leituras que fiz na experiência acadêmica e dos contatos que mantive com os próprios Negros do Rosário. No entanto, superado o entusiasmo inicial, algumas problemáticas começaram a povoar minhas reflexões: quem são os Negros do Rosário? O que eles buscam nas festas de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário?
Imbuído por um espírito aventureiro saí à “caça”, como diz Marc Bloch em Apologia da História ou o Ofício do Historiador (2001), de narradores; de pessoas que tinham alguma ligação com as festas, objeto do meu estudo. Em contatos iniciais com alguns Negros do Rosário, sempre ficava transparecido que dentro do grupo alguns sujeitos ocupavam o lugar de “guardião da memória”, conforme define Jacques Le Goff em História e Memória (1995). Estes são chamados de os “mais velhos”, pois são detentores de um conhecimento e um reconhecimento dentro do grupo. Segundo Le Goff esses “homens-memória, na ocorrência narradores”, são pessoas como Dona Inácia, Senhor José Vieira, Senhor Amaral e tantos outros que compartilham as mesmas experiências de devoção na festa de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário e se identificam como “irmãos”. Realizei diversas incursões em suas residências, onde eles compartilharam comigo relatos de vidas e de festas. Conversar com essas pessoas foi viajar a diferentes tempos, uma incursão pelos caminhos da memória. Deles levo comigo mais do que simples depoimentos...
Das histórias por eles narradas, pude perceber que nas narrativas de festas, construídas por cada “irmão” de Nossa Senhora do Rosário, não há homogeneidade (embora vivenciem experiências comuns) mas singularidade, pois a articulação de identidade(s) para um determinado sujeito não deve ser a mesma para outro. Assim, as histórias contadas por Dona Inácia não são necessariamente as mesmas para Seu Amaral, pois cada um possuem especificidade de atos e com isso, visões singulares. Portanto, as festas de São Sebastião e nossa Senhora do Rosário constituem um “lugar de memória” como sugere Pierre Nora (1993) sobre a qual são tecidas diversas vivências.
A senhora Dona Inácia, ex-rainha perpétua da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do grupo de Jardim do Seridó-RN, é um referencial vivo dessa festa e é respeitada pelo grupo que a procura para escutar suas histórias. Sobre a devoção a Nossa Senhora do Rosário, ela narra que seu avô “falava que ela apareceu numa serra, aí foram buscar com música, chegava butava, aí ela voltava pra traz, pra o mesmo lugar. Depois foram buscar as caixinhas, essas caixinhas, os tambores com os seus espontão, aí trouxeram ela ficou, ficou chamando ela de Nossa Senhora do Rosário”. Podemos perceber que esta história sobre a “origem” da devoção a padroeira dos negros se constitui uma “tradição” que é passada de pai para filho e que era ouvindo essas narrativas contadas pelos “mais velhos” que se construíam a própria identidade.
Já para o Senhor Zé Vieira, as festas de antigamente era boa e muita animada porque tinha as alvoradas: “No meu tempo a gente, os negros mais velhos daqui, quando era quatro e meia se levantava todo mundo da casa do Rosário. Ali pegava aquelas caixas, aqueles tambor, pegava e ia lá pro patamar da igreja. Quando soltava o foguetão das 5 horas, aí tocava caixa, tocava música, tocava tudo, tudo”; poetiza seu Zé Vieira, morador da comunidade Boa Vista dos Negros, localizada no município de Parelhas. Os moradores desta comunidade rural são presença marcante nas festas do Rosário de Jardim do Seridó-RN. Dentre as memórias de festas dos membros deste grupo estão as viagens “a pé” feitas até a cidade onde acontecem os festejos. Zé Vieira diz que “daqui pra Jardim é muito longe, mas a gente não achava longe, era mesmo que ser ali. Era, porque tudo com uma namorada, né? Tudo com uma namorada, tudo novo. Era uma brincadeira ir pra Jardim de pés, muita gente, é, muito mesmo. Os mais velhos com as caixinhas, aquela caixa do Rosário, outros mais velhos montado num jumento, com a carga de lenha, com a carga de capim, e era pra gente, pra mim, pra todo mundo, era uma farra. [...] Eu ainda hoje sinto saudade daquele tempo”. O senhor Amaral também alcançou esse tempo e complementa: “nós saía de lá bem de tardezinha, passava a noite todinha andando. Aí se perdia aí nesses matos, [...] Aqui muitas vezes eu chegava de madrugada, os galos cantando”, relembra o capitão de lança.
Perante estas lembranças (re)vividas, pode-se concluir que estas narrativas são, como afirma Michel de Certeau em A Invenção do Cotidiano: artes de fazer (1994), “a possibilidade de representar as trajetórias táticas que, segundo critérios próprios, selecionam fragmentos tomados nos vastos conjuntos da produção para a partir deles compor histórias originais”. Ou seja, cada Negro do Rosário, de acordo com o seu lugar social ocupado na Irmandade, seja como rainha perpetua, juiz perpétuo ou capitão de lança, escolhem fragmentos de memória para relatar e relembrar, ao mesmo tempo em que relacionam com um passado, reafirmando seus batuques, agora transformados em linguagem, sempre sintonizados com as batidas das caixas e pífaros, num ritmo sedimentar de festa e de comemoração.

Diego Marinho de Góis
Bacharel e Licenciado em História pela UFRN.
E-mail: dieguitogois@yahoo.com.br

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