segunda-feira, 28 de abril de 2008

DAS VIAGENS AS FESTAS: O DESLOCAMENTO DOS NEGROS DA BOA VISTA ATÉ JARDIM DO SERIDÓ-RN

As histórias que irei narrar poderia ser iniciada da seguinte forma: “seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa”, conforme escreve o evangelista Lucas 2,41 acerca do costume dos judeus de viajarem até a cidade de Jerusalém para celebrarem a sua festa anual: a Páscoa. Em um outro tempo e num outro espaço, um grupo de pessoas também realiza anualmente uma viajem para celebrarem a sua festa. São os Negros do Rosário, moradores da comunidade rural Boa Vista dos Negros, localizada a 15 Km de Parelhas, que ano após ano, se deslocam até a cidade de Jardim do Seridó-RN, para participarem das festas de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário, que acontece nos dias 30 e 31 de dezembro a 1º de janeiro. Estas festas, também chamadas de festas dos Negros do Rosário, se constitui um “lugar de memória”, conforme define Pierre Nora (1993), sobre o qual são tecidas diversas vivências comuns, fazendo surgir múltiplas narrativas sobre as vagens das festas ou das festas que aconteciam nestas vagens.
A presença dos negros da Boa Vista nas festas do Rosário de Jardim do Seridó-RN, não é coisa do presente, mas como afirma o senhor José Herculano Vieira (Zé Vieira): “quando a gente nasceu, aí já tinha essa festa, não sabe? Esses mais velhos, que já se acabou, já morreu, eles já faziam essa festa. E o movimento era esse, se deslocava de pés aquele povo, e então o seguinte: a gente foi nascendo, crescendo e continuou. Continuou do mesmo jeito. Primeiro o camarada ia pra experimentar, aí chegava lá, achava muito bom passar três dias de festa. Aí ficava pedindo a Deus que chegasse o próximo ano pra se deslocar de novo”. Desta narrativa, pude perceber que o senhor Zé Vieira legitima as viagens realizadas até Jardim do Seridó-RN, como sendo uma tradição herdada “desses negros mais velhos”, espelhos-vivos para os sucessores.
Seu Zé Vieira participou pela primeira vez de festa em 1944 com apenas 19 anos de idade, e logo se tornou juiz perpétuo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que além deste cargo, possui rei, rainha, escrivão, escrivã, presidente e presidenta, além do grupo de pífanos, caixa (tambores) e saltadores.ele participou destas festas até o ano de 1994, ano em que foi acometido por uma “trombose”, conforme nos informou, deixando-o impossibilitado de participar. Portanto, Zé Vieira guarda na memória inúmeras historias destas viagens de festa, e que podem ser divididas em três momentos: o preparativo, o deslocamento e a volta. Cada uma delas com características próprias.
O PREPARATIVO
Realizar uma viagem requer um período de preparação, de saber o que levar, para que tudo ocorra normalmente. Assim, os negros da Boa Vista fazia desde o dia em que o calendário marcava o mês de dezembro. Para Zé Vieira “a gente ia pra feira aqui, agora se faltasse 8 dias pra gente ir pra festa, a gente comprava um quilo de feijão na feira e esse feijão não comia, a gente deixava pra lá, comer lá. Galinha levava, teve ano aqui que matava de hoje pra manha, matava 16 galinhas. Todo mundo levava galinha pra mode almoçar e jantar”.
Todo um aparato doméstico era necessário levar para passar os três dias que durava as festas de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário em Jardim do Seridó-RN. Desde os alimentos como feijão, galinha, até a lenha em que estes produtos eram cozidos deveria ser preparado e levado, conforme complementa: “os mais velhos com as caixinhas, aquela caixa do Rosário, outros mais velhos montado num jumento, com a carga de lenha, com a carga de capim, e era pra gente, pra mim e pra todo mundo uma farra”. Seu Zé Vieira lembra das festas passadas de forma saudosista, onde as dificuldades não se mostravam como um obstáculo, mas como momentos de descontração, de farra, afinal era a festa.
Após o momento de preparação dos alimentos que iam ser consumidos nos dias de festa na Casa do Rosário (residência que serve de abrigo para os negros da Boa Vista), aguardava-se o dia 29 de dezembro, para dar inicio a longa jornada a pé até Jardim do Seridó-RN.
O DESLOCAMENTO
No tempo em que os meios de transportes como o automóvel era raro, o jeito era se deslocar a pé ou montado em animais, como o jumento ou o cavalo, assim narra Zé Vieira: “antigamente a gente se deslocava aqui da Boa Vista, a gente ia de pés e saia ontem que é dia 29 de pés. Os mais velhos daqui iam de pés ou a cavalo, e nós moços ia tudo correndo por aí, nós chegava lá, as vezes o galo cantando, um bocado de moço, bocado de rapaz, não tinha dificuldade pra gente. Daqui pra Jardim é muito longe, mas a gente não achava longe, era mesmo que ser ali. Era, porque tudo com uma namorada, tudo novo. Era uma brincadeira ir pra Jardim de pés, muita gente, muito mesmo”.
As distancias geográfica entre a Boa Vista e Jardim do Seridó-RN, conforme foi possível constatar na narrativa supracitada, era amenizada neste tempo de “antigamente” porque eles eram “tudo novo” e tinha “namorada”, e conclui: “na ida a gente, quando esses mais velhos fumavam, chegava num canto, fazia um fogo, e ali passava um pedacinho e só era caminhar de pés”. Todo esse esforço tinha um objetivo: passar três dias de festa, dançando, bebendo, farrando, mas também rezando e confessando os pecados. Porém, como diz o provérbio popular: “tudo que é bom dura pouco”, as festas de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário, só durava três dias e logo chegava a hora de retornar.
A VOLTA
Embora as “viagens” da Boa Vista para Jardim do Seridó-RN fosse animada, conforme as narrativas anteriores, o caminho “de volta” não é relembrado com os mesmos encantos, porque “tudo já ressacado, com sono, mas a gente vinha. Só que a farra no caminho não era muito não, porque o camarada tava ressacado. Três dias sem dormir em Jardim, porque tando em Jardim ninguém dormia não. Três noite, ma a gente vinha”. Tinha que “voltar”, porque as festas haviam terminado e era o momento de retomar o ritmo da vida na comunidade. Mas essa é outra história...
DIEGO MARINHO DE GOIS:bacharel e licenciado em História pela UFRN, onde defendeu a monografia intitulada Entre Estratégias e Táticas: enredos das festas dos Negros do Rosário em Jardim do Seridó-RN, no 1º semestre de 2006.

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